ANDRADE, Oswald DE
Memórias sentimentais de João Miramar (7ª ed.)
Serafim Ponte Grande (6ª ed.)
Edit. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1980.
I. PERSONAGENS
Além dos personagens típicos para manter um mínimo de estrutura no romance (parentes, esposa, amante, filha, etc.) são de particular interesse os amigos e conhecidos de João Miramar, todos eles basicamente extraídos do ambiente que o autor frequentava na São Paulo anterior e contemporânea à Primeira Guerra Mundial. São intelectuais de província, de fala amaneirada e postiça, pseudo-poetas acadêmicos sempre em atitude empertigada e oratória. Os nomes: Machado Penumbra, pseudo-autor do prefácio ao Miramar, ele próprio personagem do livro; o Dr. Pôncio Pilatos da Glória, sempre com manias de orientalista; o Dr. Mandarim Pedroso, Presidente do Recreio Pingue-Pongue, "chiquíssima sociedade de moças que a sua personalidade centrava como um coreto", no dizer satírico do autor, e outros, sempre com a intenção de fustigar as pseudo-culturas dos novos-ricos, o parnasianismo acadêmico em poesia, e todos os pequenos vícios e caprichos fúteis da burguesia, de que o próprio Miramar se considera ex-membro (e o próprio autor, como escreve ele mesmo no prefácio ao Serafim Ponte Grande). Outros protótipos satirizados são Minão da Silva "jovem orgulho mulatal do Grêmio Bandeirantes", semiletrado, mas com ares de orador; a sogra de Miramar, ricaça, inculta e caprichosa (cfr. por exemplo o parágrafo n. 71).
II. PROPÓSITO DO "MIRAMAR"
Trata-se de uma sátira à burguesia cafeeira e pseudo-intelectual do São Paulo, utilizando todos os recursos artísticos do então recente Modernismo, acrescentando os que Oswald de Andrade incorporou depois e durante suas viagens à Europa. Também, o autor pretende inaugurar uma nova forma de narrativa, até o momento desconhecida no Brasil, e que produziu muitas polêmicas. Estilisticamente precede o Movimento Antropofágicoe o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. São propositais os erros na escrita e as manifestações de falta de cultura e de educação, para marcar com mais ênfase a paródia.
São igualmente propositais algumas mudanças da estrutura do romance a respeito do que se consideraria a estrutura tradicional: não está dividido em capítulos, mas em parágrafos numerados sem conexão necessária; esta tendência é muito mais exagerada em Serafim Ponte Grande, publicação posterior do autor em que desenvolve mais as técnicas apresentadas pela primeira vez no Miramar: técnica cinematográfica, superposição de planos, mistura de imagens e exemplos, confusão cronológica, influência do cubismo na construção das frases e no emprego da adjetivação, estilo telegráfico, irregularidades na pontuação, etc.
III. MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR
Esta obra compõe-se de breves cenas — várias delas com graves inconvenientes — divididas em parágrafos numerados de 1 a 163. Para ter uma boa idéia da obra podem ser lidos os seguintes parágrafos: 2, 3, 8, 15, 28, 48, 56, 59, 64, 68, 71, 89, 106, 109,113, 132, 153, 159, 160 e 163.
IV. SERAFIM PONTE GRANDE
Serafim Ponte Grande é professor de geografia e ginástica, sétimo escriturário de uma Repartição nas horas livres, casado com Dona Lalá (fútil, caprichosa e imoral) e pai de dois filhos. Com amigos da Repartição tem uma amizade insossa, limitada a jogos de bilhar: o Manso, Pinto Calçudo e o odiado chefe da Repartição, Benedito Carlindoga. Inicia aventuras amorosas com Dorotéia —vulgar atriz de teatro e declamadora de poesias ruins—, que o abandona fugindo com o Manso, sem pagar a conta da pensão. Serafim rouba uma grande quantidade de dinheiro e viaja pela Europa e Oriente, sempre banal, acomodado, à caça de aventuras amorosas já desde o começo da viagem de barco.
A seguir apresentamos o que se poderia chamar —a grosso modo— o enredo deste "romance-invenção, segundo declaração do próprio autor. Na verdade, há uma preocupação de criar descontinuidades na narrativa, de interromper todo e qualquer sintoma de romance tradicional, de impedir que o leitor tenha uma idéia unitária da estrutura da obra: o livro não tem estrutura definida, mas sim o que o crítico Haroldo Campos chama Grandes Unidades de Superfície, à maneira de divisões sem nexo e sem preocupações cronológicas (recorde-se a técnica cinematográfica e a cubista, que o autor aprende em Paris), que acentuam o caráter de sátira e de paródia, sobretudo —além dos costumes da burguesia— dos gêneros literários existentes. De fato —a paródia está presente constantemente: nas poesias-remedo de Rostand, nos subtítulos de algumas Unidades, nas notas aclaratórias e na própria linguagem dos personagens. O autor não salva nenhum estilo, novo ou de outras épocas: poesia, romance, contos épicos, novelas de cavalaria, teatro bufo, diários, crônicas sentimentais, livros de viagens, casos amorosos, narrativas políticas e policiais, preocupações sociais, descrição de paisagens e mesmo os romances de introspecção psicológica. Tudo no livro é apresentado com intenção deliberadamente ridícula, adocicada, grotesca e cínica; parece como se os personagens não pudessem evitar a esterilidade de suas vidas e procurassem —para fugir do desespero— a futilidade e as aparências, numa atmosfera de constante movimentação (viagens longínquas, imaginações e pensamentos que se misturam sem unidades, conversas que se interrompem, diálogos vazios de raciocínio, etc.), sempre à procura de um equilíbrio sabidamente inexistente (e por isso mesmo estúpido) num ambiente amoral, propositadamente surrealista em algumas Unidades.
As Grandes Unidades de Superfície têm os seguintes títulos e resumos:
1. Recitativo. Apresenta o protagonista à maneira de uma rubrica teatral.
2. Alpendre. Contém um excerto gaiato de cartilha, um retalho de composição infantil, poemas-remedo de Rostand, um breve descurso sobre a iniciação amorosa e uma cena dialogada de teatro bufo.
3. Folhinha conjugal. É uma sátira de diário íntimo sobre a fracassada vida familiar e conjugal, as veleidades "beletristas" de Serafim e o caso amoroso com Dorotéia.
4. Testamento de um legalista de fraque. Retrospecto surrealista das peripécias de Serafim durante a Revolução de 1924 (de que o autor fora espectador); paráfrase de notícia político-jornalística; um "ensaio nirvanista" intitulado O Largo da Sé, caricaturando os discursos sobre o óbvio; uma série de fragmentos em que se convocam, para a sátira, os gêneros literários considerados "menos nobres": a literatura de folhetim, as colunas sociais das revistas e jornais burgueses, os romances de aventuras a até mesmo as formas de expressão habituais no desempenho de algumas profissões, como as declarações judiciais, as redações burocráticas, os abaixo-assinados, etc. Toda esta pretensa destruição é desempenhada pela intervenção de palavras chulas e descrições grosseiras.
5. No elemento sedativo. Relação de viagem em transatlântico, onde a nota cômica é dada pelo nome "caipira" do navio: Rompe-Nuve e pelo epígrafe, também "caipira": Mundo não tem porteira". A história de Mariquinhas Navegadeira e das proezas de Pinto Calçudo a bordo é tratada à maneira das crônicas medievais e dos romances picarescos, com títulos adequados ("De como Pinto Calçudo, querendo fazer esporte..."), onde se misturam arcaísmos com rimas fáceis, tudo num clima histórico e de "pastiche". No final desta Unidade, Serafim expulsa Pinto Calçudo do livro.
6. Cérebro, coração e pavio. Continuação da história marítima, com paródias em todos os níveis: poemas, cartas, discursos, diálogos de dramalhão e jocosidades sobre a figura do herói.
7. O meridiano de Greenwich. Apresentada expressamente sob o título "Romance de capa e pistola"; Serafim, agora fidalgo e fora do tempo, é protagonista de outra aventura marítima no encalço de uma evasiva Dona Solanja. A linguagem acompanha a paródia dos romances de capa-e-espada, com tratamentos cerimoniosos e afetados e, como os romances "românticos", acaba em tragédia (no caso, em tragicomédia) sob forma de um linchamento humorístico depois da efusão amorosa.
8. Os esplendores do oriente. Episódio em estilo cubista (lembrando as Memórias sentimentais...) que narra as andanças de Serafim Ponte Grande pela Turquia, Grécia, Egito e Palestina, em ritmo de romance policial: o herói corre atrás de duas misteriosas "girls d'hoj'em-dia".
9. Fim de Serafim. Abre com o poema de torna-viagem e fecha com um poema de Serafim aos pósteros —depois de sua morte—, que leva título-sátira barroco: "Pregação e Disputa do Natural das Américas aos Sobrenaturais de Todos os Orientes". Mas, como corresponde a uma obra que pretende quebrar todas as "tradições", este final é falso: há ainda, nesta Unidade, uma panorâmica da evolução urbana de São Paulo em estilo "Pau-Brasil".
10. Errata. Continua o tumulto, tratando da construção do "Asilo Serafim" pelos familiares e amigos do falecido herói. O primeiro hóspede desse manicômio é justamente o pintor incumbido de retratar o defunto.
11. Os antropófagos. É o verdadeiro fim do livro (também um fim falso, pois pode perfeitamente ser o recomeço), com a reentrada de Pinto Calçudo como capitão-pirata da nave "El Durasno". A linguagem é invadida por espanholismos deformados, que grifam as fanfarronices do herói segundo, trocadilhos (tomabadilho/tomabandalho) e citações deturpadas de autores tirados de contexto e ridicularizados. Segue-se a utopia de viagem permanente e, em comentário de Haroldo de Campos, "a reeducação, à maneira de Sade, da "virtude" pelo "vício", num exercício de liberdade total como radical negatividade".
Nos amplos estudos críticos a Memórias sentimentais de João Miramar e a Serafim Ponte Grande, Haroldo de Campos serve-se, para explicar a estrutura e motivações dos dois romances, das aportações dos linguistas do estruturalismo e das pesquisas de Gyorgy Luckacs sobre James Joyce e Thomas Mann.
V. CONCLUSÃO
Memórias sentimentais de João Miramar e uma sátira social com todos os ingredientes do gênero. Do ponto de vista moral e religioso é um livro cético e, em determinadas passagens, claramente irônico e ácido. A fé dos personagens —sobretudo do principal João Miramar, e de seus amigos mais íntimos— encontra-se sempre confundida com os preconceitos superficiais de gente acomodada e fútil, uma filosofia da existência cujo valor mais alto é a permanente mobilidade, o contínuo mudar de situações, a procura de todo tipo de novas e excitantes experiências, etc..., onde a fé não tem lugar, e a moral se contempla como convencionalismos ante-modernistas, hipócritas e míopes.
Como exemplo de mobilidade, apresenta a simbologia das viagens ultramarinas de João Miramar, a simbologia do próprio sobrenome, etc. Considera essas viagens como "redentoras" do tédio da vida quotidiana. Essa visão da realidade é colocada muito mais radicalmente em Serafim Ponte Grande, mais duro e extremo na sátira, assim como na descrição de situações escandalosas.
J.L.C. (1982)
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