Os autores da Opus Dei descrevem a atividade de Álvaro del Portillo no Concílio Vaticano II com alguns dados que dão margem a dúvidas e malentendidos. Assim algumas comissões de que Álvaro del Portillo teria participado, e que não aparecem na historiografia do Concílio [1], porque elas existiram na Cúria e não no Concílio.
Na biografia recente de Bayo [4] isso aparece assim: "El 10 de agosto [de 1959] don Álvaro fue nombrado presidente de la 7a comisión preparatoria, en el seno de la Sagrada Congregación del Concilio, cuya temática de estudio era el laicado católico. Unos días después, el 12, fue designado también miembro de la 3a Comisión, encargada de los medios modernos de apostolado" (p. 383)...
Quem ler o capítulo do Bayo donde esse fragmento foi copiado (disponível no site da Opus Dei ) poderá avaliar por si qual efeito a sua leitura causa. O que eu pessoalmente percebo é que a narração de Bayo, para favorecer Álvaro del Portillo, obscurece o entendimento do Concílio. Ele evita esclarecer que aquelas duas comissões eram internas da Cúria, ou ainda que a "Sagrada Congregación del Concilio" e o Concílio Vaticano II são coisas diferentes. Ele avança e recua no tempo, sem distinguir as nomeações que ocorreram na Cúria daquelas ocorridas nos organismos conciliares. Desse modo reorienta todos os dados na mesma direção, para criar percepção de unanimidade. Ao fazer isso ignora diferenças de mentalidade (veja mais abaixo onde falo do ponto de vista qualitativo). Esse quadro irreal obstaculiza a leitura dos documentos do Concílio, porque ela depende de dados de contexto [6, veja o n. 8]. A intenção de Bayo não é historiar o Concílio, mas não se pode escrever uma vida de santo que dificulte o acesso ao que a Igreja tem para dizer.
Qual o contexto da atividade de Álvaro del Portillo naquelas comissões da Cúria? Foi a coleta de sugestões da fase antepreparatória do Concílio [7]. Uma Comissão Antepreparatória, que então era o organismo conciliar, pediu sugestões aos bispos, a Cúria e as universidades, e imprimiu-as [3].
De um ponto de vista quantitativo, a contribuição da Cúria foi um tomo de 427 páginas, sendo que os 15 tomos da série antepreparatória [3] somavam juntos umas 9500 páginas. Portanto os dez dicastérios da Cúria, dentre eles a "Congregación del Concilio", contribuíram juntos uns 5% do total de páginas. Destes 5%, supõe-se então que algumas páginas devam créditos a Álvaro del Portillo.
De um ponto de vista qualitativo, era de se esperar dos bispos sugestões de natureza mais pastoral, e das universidades sugestões de fundo mais teológico. Ainda que as comissões que a Cúria montou tiveram especialistas externos [2, t. 1 p. 114], ela é um staff administrativo, e possivelmente fez sugestões mais de tipo canônico, isto é, regras sobre direitos e deveres na Igreja. Se assim foi, então os documentos finais do Concílio Vaticano II, que teve ênfase pastoral e também doutrinal, mas não canonística, podem ter herdado bem poucas daquelas sugestões da Cúria (a prelazia pessoal pode ser uma delas).
Em relação aos temas daquelas comissões, é importante situá-los no ano de 1959. Bayo fala informalmente em "laicado católico" sem dar nome para a comissão. Isso induz o leitor de hoje a imaginar, em 1959, um discernimento sobre leigos que Álvaro del Portillo só lucraria depois de assimilar as discussões do Concílio [5]. O tomo de sugestões da Cúria [3] talvez permita inferir o que Álvaro del Portillo tinha a dizer sobre leigos em 1959, além dos temas que já eram amplamente debatidos, como a Ação Católica ou os institutos seculares. Sobre os "medios modernos de apostolado", em 1959 provavelmente era o apostolado ativo junto a pessoas ou populações em trânsito ou afastadas da Igreja [cf. 2, t. 1 p. 202].
Notas e Referências
[1] daí o espanto de Juan Estruch no capítulo 11 do livro Santos y Pillos , mais diretamente discutido por Ana Azanza , Juan e Salvador.
[2] Boaventura Kloppenburg, Concílio Vaticano II, 5v, Vozes 1962-1966.
[3] Acta et Documenta Concilio Oecumenico Vaticano II Apparando. Series I (Antepraeparatoria), 15 tomos. O tomo 1 são documentos do papa. Há 10 tomos com sugestões dos bispos (dois deles são índices). Um tomo contém as sugestões da Cúria, e três tomos as sugestões das universidades.
[4] Javier Medina Bayo, Álvaro del Portillo. Un hombre fiel, Rialp 2012. O capítulo sobre o Concílio pode ser lido no site da Opus Dei .
[5] Só dez anos mais tarde ele publicaria Fieles y Laicos en la Iglesia. Assim na Opus Dei houve uma evolução relacionada com informações que passavam pelas atividades desempenhadas na Cúria ou no Concílio. Por exemplo [3], que foi publicado como material secreto. O próprio desencanto de Escrivá com a figura do instituto secular parece relacionado com dados estatísticos (cf. [4] p. 386 nota 16).
[6] John O'Malley, Dez Formas para confundir os ensinamentos do Vaticano II .
[7] João XXIII explicou essa coleta na carta Superno Dei nutu . La Comisión Antepreparatoria ha llevado a cabo con suma diligencia el encargo que Nos le confiamos. Se ha puesto en contacto con el Episcopado para recibir sus consejos y sugerencias acerca de las materias de que se ha de tratar en el Concilio: y después de haber ordenado cuidadosamente el material contenido en las dos mil y más respuestas, enviadas por Obispos y Prelados con expresiones de regocijo y felicitación, lo ha puesto en conocimiento de las SS. Congregaciones de la Curia Romana, que han podido utilizar con gran provecho en la elaboración de las proposiciones que Nos han presentado. Además las Universidades de los estudios eclesiásticas y católicas, movidas por un celo semejante, han presentado votos y estudios sobre asuntos que serán de gran utilidad para la Iglesia.
